Não sei o quão infindável é essa discussão, mas sei o quão particular ela é e chegou batendo na nossa porta já há algum tempo. Antes de contar como lidamos com ela dentro da nossa casa, acho necessário dizer como nos preparamos para recebê-la. Pois foi de peito aberto, com a consciência de que a resposta para nossas dúvidas estaria nas crianças. Antes de pensarmos como a sociedade pensa, como nossos pais pensaram, como o sistema impõe, como nós (eu e Hugo) vivemos a escola, como seria “certo ou errado”, pensamos nas reais necessidades das crianças.
E isso tudo quer dizer sobrepor o bem estar delas ao nosso, coisa que a natureza, perfeita que é, já ensina como condição essencial da maternidade/paternidade antes mesmo das criOnças nascerem. Somos pais em tempo integral há quase quatro anos e vivemos longe da família ou de qualquer ajuda para educá-los boa parte desse tempo. Traduzindo: estamos mortos com farofa! Mas essa foi nossa escolha desde a gravidez e talvez uma das mais bonitas e certeiras que já fizemos. E no começo deste ano o esgotamento bateu forte, mas tão forte, que realmente pensamos em matricular Nina e Tomé na escola. Talvez isso fosse sobrepor nosso bem estar ao deles e isso iria na direção contrária do que sempre seguimos. Mas, por outro lado, pais cansados e infelizes não conseguem ser pais completos, e isso também não condiz com a forma que escolhemos viver esse amor sem fim. Somos e seremos de corpo e alma sempre, nossos filhos são passagens de ida pra a plenitude.
Então, como sempre fazemos, deixamos que Tomé e Nina respondessem à nossas inúmeras dúvidas de forma bem natural, mesmo sem saber que uma pergunta tão importante lhes foi feita. E, também como sempre fazem, estão nos trazendo respostas diárias que nos carregam pelas mãos rumo à uma certeza: não, eles não precisam de uma escola nesse momento!
Não sei contar nos dedos quantas coisas lindas Tomé já aprendeu nesse último ano tendo como casa a natureza. Hoje ele te conta sobre plantas medicinais, nome de pássaros e seus hábitos rotineiros, espécies raras do cerrado, dá conta de reciclar seu lixo, fala sobre o funcionamento das composteiras, ensina a usar um banheiro seco, planta e cuida do pequeno jardim que fizemos pra ele e por aí vai. Mas, o mais importante de tudo, ao nosso ver, é a base forte na qual ele vem construindo sua personalidade, seu caráter: seus dias são cheios de liberdade (que bem anda de mãos dadas com a responsabilidade), o respeito à natureza e ao outro são lições diárias ensinadas por nós e por todas as pessoas que vivem/passam por aqui, a beleza das coisas simples, a riqueza da diferença e da diversidade, a verdade das coisas e das pessoas, o pé no chão e a troca de energias com a terra, a importância do coletivo/compartilhar, a essência do amor genuíno em tudo que nos move.
Daí um belo dia vem uma criança de fora do Ecocentro, uma criança que frequenta uma escola, assiste televisão, usa o mesmo tênis daquele super herói que todo mundo tem que ter, recebeu uma educação “dentro do sistema”, come uma porcaria a cada meia hora, se gaba de todas as coisas que ganhou e que tem e que comprou e que vai ganhar e que vai ter e blá blá blá pra passar o dia com Tomé. E no final da tarde ele chega em casa apontando um pedaço de madeira que saiu daqui como uma vara de pescar e voltou como uma arma. E nessa hora eu quero morrer, meu chão se parte em dois e meu peito se aperta.
Não queremos criar nossos filhos em uma bolha verde pra sempre, esse seria um tempo muito longo e não temos a prepotência de querer controlá-lo. Mas sentimos que ainda não é hora de expor Tomé e Nina à conceitos e valores com os quais não concordamos, dos quais não estamos fugindo ou ignorando, apenas optando por não vivê-los em nossa rotina. Proteger não é a melhor maneira de educar e privar não é proteger. Muitas dessas crianças estão aparecendo por aqui e as tenho visto com outros olhos quando descobrimos que podemos usar essa diferença a nosso favor. A gente nunca teria tido a chance de explicar a ele o que é uma arma, o quão violenta ela é, se esse outro menino não tivesse aparecido por aqui com essa “brincadeira”. Talvez ele aprendesse sobre isso de outra forma, num outro tempo, com outras pessoas e tudo poderia ser pior.
A maldade humana e tudo aquilo que não queremos pra eles vai sim chegar, a menos que nos isolemos cada vez mais da sociedade. Mas creio que podemos escolher a forma e o tempo para apresentar-lhes as mazelas do mundo, o que não queremos é que a escola faça isso por nós, porque certamente o faria de forma bem mais dura e seca. Estamos aprendendo sobre isso, cada dia mais, sempre de peito aberto, rindo e chorando com nossas descobertas. Um dia, quem sabe, tudo irá mudar, quando eles nos pedirem para frequentar uma sala de aula.
Tudo isso também nos trouxe uma outra reflexão importante: precisamos ser pais melhores, mais antenados e proporcionar a eles um ambiente de estímulos além dos que o meio ambiente em que vivem lhes oferece diariamente. Optar por esse momento longe da escola quer dizer, entre outras coisas, oferecer conhecimento dentro de casa. Nunca tivemos, eu e Hugo, liberdade para manifestar nossos desejos dentro de uma escola. Não fomos estimulados de acordo com nossas aptidões, não nos foi respeitado o interesse pela arte, pela dança, por qualquer outra coisa que nos identificássemos mais nessa época de descobertas. Não tivemos muitas escolhas e possibilidades nos foram negadas. A escola nunca potencializou nossas potências, muito pelo contrário, muitas delas foram reprimidas pelas equações matemáticas, químicas e físicas que nunca usamos na vida. Queremos que Tomé e Nina cresçam com muito espaço para manifestar seus dons, seus gostos, suas habilidades, sejam eles quais forem. Por isso precisamos, como pais, nos preparar para intensificar esse ambiente de expressões livres, de observações, de atividades multidisciplinares de acordo com o tempo de desenvolvimento deles, do corpo, da consciência, da alma de cada um. Ainda temos um longo caminho pela frente e estamos muito seguros de que não os deixaremos desamparados nesse florescer, estamos decididos a nos preparar com muito amor e criatividade para esse momento bonito e extremamente importante.
Não queríamos que as palavras derramadas aqui soassem como um julgamento às famílias que têm seus filhos na escola, que optaram por uma educação tradicional e são felizes dentro desse modelo. Estamos, nesse nosso diário aberto, contando como tem sido pra gente esse momento, falando da nossa família, da forma como nós enxergamos e escolhemos viver esse momento. Respeitamos e admiramos toda forma de educação que carregue em si o bem estar dos pequenos e o desenvolvimento de homens conscientes. Essa é mais uma nota sobre mais uma escolha, estamos escolhendo educar crianças transformadoras, respeitando todo o seu potencial como seres de luz que são. E isso, (in) felizmente, não conseguimos sentir que poderia acontecer dentro das quatro paredes de uma sala de aula, nossos filhos pedem mais verdade e liberdade para ser por inteiro.
Temos um estilo de vida que permite essa escolha, temos o tempo como parceiro nessa viagem, muito respeito pelo mundo que estão descobrindo e construindo. Ainda não sabemos se esse é o caminho certo, mas é o que pulsa dentro da gente agora. E, na real, nada por aqui é para sempre, sabe? Vamos remando nosso barquinho em águas claras, calmas, respeitando o vento que sopra, o ritmo do rio, e navegando rumo à esse encontro bonito por demais, o encontro das nossas crianças com a verdade, o respeito e a liberdade dos seus espíritos.
Solte o verbo!