Segue o baile

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Todas as poucas vezes que assisti a uma novela foi pulando mil capítulos e sempre entendendo a história toda mesmo assim, independente de onde tivesse parado e pra onde tivesse voltado. Na novela real da minha vida de ilusões é a mesma coisa, tudo que eu contar, você que parou lá atrás vai entender. Ou não, porque eu realmente não sou boa de fazer escolhas muito fáceis, “normais” ou compreensíveis.

Te conto esse capítulo da novela aqui do meu lugar favorito, a Bahia. Mundo deu voltas, desbravamos outras moradas e voltamos pra terra onde enterramos o umbigo de Nina e nosso axé. A vida perto do mar tem um jeito, a natureza aqui sempre me pega pelo espetáculo diário da beleza e pela confiança no mistério de tudo que há além da nossa pequeninice. Descobri que o mar é Deus, acordo antes do sol, tô viciada em picolé de tapioca, não sujo mais roupas porque só ando de biquini, caminho na praia pra não enlouquecer com a rotina, amo o calor e detesto ventilador, cada dia mais me sinto um pedaço de tudo, cada vez menor em mim e maior no que vejo, no que me interessa, naquilo ou naquele pra que me dou.

As crianças não cansam de jogar o tempo correndo na nossa cara e Tomé sustenta seus 13 anos numa pré adolescência que ocupa todos os cômodos da casa e me atravessa com sessões diárias de “terapia do espelho”. Nina fez 10 anos, ontem pegou onda depois da arrebentação sozinha pela primeira vez e isso diz tanto sobre como ela tem crescido se jogando na vida. Minha maternidade segue sendo tiro, porrada e bomba, mas também segue sendo a paisagem mais bonita que vejo até quando tá tudo desmoronando em chuva. Bem na real, essa fase tá tenebrosa, eu passo na rua e consigo identificar cada mãe de adolescente como eu, todas temos cabelos em pé e cara de interrogação. Tomé e Nina são fruto de um quase “experimento”, nossas escolhas ousadas foram para e por eles também, agora estamos conseguindo ver um pouco de como tudo isso bateu e reverberou. Um movimento meio solitário e intenso, que tem exigido da gente correr de uma perna só com cinco pratos equilibrados em cada mão e ainda sorrindo, porque desenvolver crianças é beleza em cima de caos doendo em paz.

Eu e Hugo, pra completar nossa coleção de escolhas políticas e ousadas, conseguimos juntar um amor antigo com grana, hoje trampamos no mercado legal da maconha. Na loucura que é fazer o que se ama no Brazeeeeel, vamos construindo a caminhada da nossa empresa e apoiando milhares de pessoas que buscam tratamento com óleos e medicamentos dessa planta, que sempre foi nossa terapia também. Pois é, esse momento de glória para o maconheiro chegou, temos um mercado legal no país, porém branco, elitista e desigual. Mais um vez, escolho a parte mais dura da parede pra furar e caio no Complexo do Alemão/RJ. Mas esse é um capítulo a parte, porque minha vida também se divide entre antes de depois de trabalhar na favela com maconha e crianças autistas.

Ando sentindo que a vida tá nesse momento de desafiar, aproveitando a suposta maturidade dos 40 e poucos anos e me cobrando o sustentar de tantas escolhas feitas até aqui. Porque sim, não adianta só ter o privilégio da escolha, tem que honrar essa porra com acerto, erro, responsabilidade, consequência e o que for. Mas também sinto que tem aí a sagacidade do tempo, que vai ensinando pra gente o descolar do próprio umbigo e a urgência de perceber o mundo em volta do corpo. Não sei, mas parece que, a medida que as crianças crescem, mais eu me sinto pronta para deixar os caras na mão do mundo e assumir outra batalha, a de melhorar esse mundo que vai segurá-los dali pra frente. Cada vez menos o que vem no singular tem me bastado, não tem sido mais divertido tramar uma vida particular. Depois da favela nunca mais consegui pensar que meu corre é por mim e pelo meus, é algo tão maior que nem sei se tenho perna pra tanto corre. Clichêzão, né? Mais um pra minha coleção de clichês revolucionários aquarianos, também já aprendi a conviver em paz com eles e sigo sempre certa pela contra mão.

No mais, sigo magrela e com mania de dançar sozinha, pintei as pontas do cabelo de loiro na favela e ainda não aprendi a pedir ajuda quando a mente me sufoca, continuo cozinhando mal e me jogando em tudo como uma adolescente inconsequente de 16 anos, não gosto mais de varrer a casa todo dia nem de gente que não tem nada pra me ensinar, minha pele vive queimada de sol a 40 graus e sinto uma saudade avassaladora do colo das amigas. Finalmente comecei a fazer terapia pra me salvar de mim mesma e andar descalça continua sendo um traço inquestionável da minha personalidade. O dia de amanhã ainda é um mistério pra mim e o tal do futuro dizem que às deusas pertence. Minha mochila tem óleo essencial de palo santo pra fechar o corpo e um monte de agora pra viver de peito aberto.

Hoje acordei com vontade de escrever, tá chovendo muito na baêa e o mar me disse que é pra desaguar também. Que alívio ter a natureza como guiança desde tanto tempo atrás.

2 respostas para “Segue o baile”.

  1. Avatar de @brunagmorales
    @brunagmorales

    Que saudade de te ler, Manu. Obrigada por isso.

    Que a gente possa se cruzar outras tantas vezes e que eu possa reencontrar a Nina, que me apresentou uma coisa que só fui descobrir três anos depois, atuando oficialmente como babá. ❤

  2. Avatar de Tuca
    Tuca

    minha Manuca pinduca amo ler seus devaneios, entregam tanta vida, coragem, realidade 💙

Solte o verbo!

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