A escola

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Quase 100% das perguntas sobre a educação das crianças durante esses anos de mato e contrafluxo foi sobre a escola. Qual escola, quando escola, toda escola, nenhuma escola, por que não escola, cadê a escola. As respostas foram quase 100% silenciosas, mentirosas ou despistadas. Isso porque realmente não tinha escola nenhuma e essa escolha nos colocava de frente pro risco de sermos enquadrados na tal alienação parental, segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente. Hoje, com matrículas feitas e uniforme sujo, podemos falar abertamente sobre a escolha de não ter colocado os moleques na escola até a hora que eles quiseram ir por si mesmos.

Toda essa construção, mais uma vez, aconteceu em bases de privilégios, óbvio. Só pode ter mininu fora da escola quem tem tempo pra cuidar. A gente viveu quase 10 anos com criança e trabalho dentro de casa tudo junto ao mesmo tempo agora e, sinceramente, não sei como. Mas, essa foi uma escolha arriscada e muito consciente, da qual nunca nos arrependemos, mesmo agradecendo de joelho as horas que hoje eles passam na escola. Os motivos de não termos acreditado na educação tradicional como melhor opção para Tomé e Nina foram muitos, ainda são os mesmos. Mas, hoje, essa pauta não é mais sobre escolhas parentais, isso acontece quando os caras descem do colo e o mundo ganha caminhos próprios enquanto você pisca o olho.

Depois de sair da Bahia, lá pelos seus nove anos, Tomé teve o primeiro breve contato com uma “escola” (lê-se aqui: monte de crianças juntas que nunca foram pra escola + monte de pais juntos construindo essa escola que não queria ser escola). Foi ele quem escolheu esse momento e o aproveitou muito bem, seguindo mais ou menos a mesma toada das suas “salas de aula” anteriores: crianças de diferentes idades pra se relacionar, árvore pra subir, rio pra nadar, arte pra inspirar, valores pra trocar e aprender. Nessa época, Nina preferiu permanecer em casa, desbravando alfabetos e matemáticas, nos formando os especialistas em alfabetização que nunca fomos.

Vento bateu, maré virou e fomos parar no Uruguai, 15 dias de férias que se transformaram em um ano fora de casa. Daí o segundo contato com a escola, agora com Nina junto. Escola rural, país socialista, língua espanhola, uniforme esquisito, haja peito aberto. Não ter muito uma ideia formada sobre essa lida escolar, por não tê-la frequentado quase nada, fez com que os caras se aventurassem sem expectativas e com muito peito aberto. E foi muy hermoso aqui também, quase um ano letivo inteiro de plantios e colheitas na terra, revoluções históricas, geografias latinas, muito sobre a experiência coletiva e pouco sobre a nota individual.

De volta ao Brazeeeel, e com um salto de desenvolvimento gigantesco, a onda da escola agora era turma, gang, bando, galera. As matérias se resumiam a zoação aplicada, teoria da paquera e práticas integrativas de bagunça. Ainda assim, dentro da bolha segura da natureza, pais meio hippies, liberdade e nosso salvador da pátria Paulo Freire na guiança. Nesse momento, quando o tempo corre arrancando na subida de quinta, o mundo cor de rosa aqui de dentro começa a encontrar as mazelas sem cor do mundo lá fora. Fudeu, mas já era previsto sem pretenção de ser evitado. Talvez, nossa escolha de não escola por tanto tempo tenha sido a ilusão de alargar a chegada desse confronto.

Mas é nessa hora também que a gente saca rapidamente que o que os caras aprenderam muita coisa importante nessas experiências todas que aconteceram fora de quatro paredes. A forma como eles permeiam esse rolê novo, que explode na escola, é cheia de ferramentas coletadas numa pequena vida aprendendo com a natureza, outro tipo de escola. Isso é foda, porque a gente consegue ver os faróis que tão ali iluminando ações, pensamentos, lógicas, comportamentos, decisões deles na frente da vida e ao lado das pessoas. É tipo uma sorriso no canto da boca que sussurra: “valeu a pena esse caralho”.

Roda mundo, roda gigante, voltamos pra Bahia e as crianças escolhem seguir na escola. Escola pública. O fim declarado do sorriso de canto de boca e do sentimento pleno e purpurinado de boa mãe. A cratera do mundo se abre ainda mais, os faróis são colados a prova ainda mais, chegam outras percepções, valores, consciências, justiças, crenças, ensinamentos, cabelo no suvaco e voz fina grossa grossa fina fina fina grossa. Não é mais tempo de assistir os confrontos de mundos, é hora de ir pra guerra defender o mundo no qual se acredita. E não me refiro à bolha verde na qual se foi criado, falo desse mundo todo e da urgência de se integrar a ele como agente de transformação.

Enquanto um mundo novo se abre na escola com cadernos fechados porque é mais legal um corredor cheio de fervor pré-adolescente, eu transformo minhas certezas em fé. Kkkkkkkkk! Tem hora que não tem melhor saída, tem só a única saída que, nesse caso, é rir de mim mesma. Um dia de cada vez, um perrengue por dia, vou olhando pra escola com uma positividade quase tóxica de uma boa parceira (quem diria). “Se você não pode com ela, junte-se a ela”, dizem os monges tibetanos e eu tô escutando porque é o que tá teno. É novo pra mim também, tô vivendo a escola depois de tanto tempo e de um lugar tão diferente, lutando pra não meter um zero na prova de mãe. E me entregando junto com eles, ao menos tentando, indo pra aula todo dia, atenta aos mil universos que transitam entre lá e cá, que se expandem e se complementam, que trazem perigos e magias, que são tudo parte de uma coisa só que é crescer vivo na vida.

Tem sido doido demais. Mas posso dizer, e que alívio esse poder, que nossas escolhas foram certeiras em relação às “salas de aula” oferecidas a Tomé e Nina antes da escola e até aqui. Talvez ainda nem tudo tenha se firmado, boto fé nisso também, acho que muita coisa vai bater lá na frente. Mas a vista que tenho até aqui me alegra grande e forte, é tudo sobre aprender e conhecimento é agua sem borda ou contorno que dê limite.

5 respostas para “A escola”.

  1. Avatar de Vania
    Vania

    Legal demais 👏👏

    Eterno aprendizado….sem nunca perder o pano de fundo dos seus valores mais preciosos e compartilhando tudo isso com a gente . Valeu demais. Fé sempre!!!

  2. Avatar de Dates Matos Leite
    Dates Matos Leite

    Obrigada! Viajo nos suas aventuras e histórias – que os guris sejam felizes e cidadãos.

  3. Avatar de pedrobresson74

    Ô truta, cê tá viva e escrevendo?! Que boa notícia!

    Passa na minha newsletter depois: https://aleajactaest.substack.com/

    Bjos e saudades 😘

  4. Avatar de Luiz
    Luiz

    saudades de te ouvir….. mais um relato esplendoroso

  5. Avatar de Ana Paula Trajano Gonçalves Da Silva
    Ana Paula Trajano Gonçalves Da Silva

    Ah mas como eu sinto falta de suas notícias. Andaram por lonjuras, agora eu entendo o porquê de nunca mais eu ter recebido aquele email gostoso que tanto me alegra. Mas eis que hoje abri o email, meio sonolenta porque estou com neta recém nascido, baita privação de sono, aí o coração chega acelerou! Claro que vim correndo ler. Gratidão por dar noticias. Xero direto daqui de PE

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